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O relato da mulher condenada a 13 anos de prisão por matar homem que tentou estuprar sua filha

“Minha mãe era uma mulher que bebia muito. Assim, quando nasci, minha avó materna, que não queria que eu crescesse naquele mundo desequilibrado, decidiu assumir a minha criação e me deu o seu nome, Genny.

Tive uma infância muito feliz com meus avós em Carapicuíba. Dormia no meio dos dois, era uma delícia. Era o xodó do casal, que sempre me deu conforto, carinho, compreensão. Sempre muito religiosa, a rotina de dona Genny era de casa para a igreja, da igreja para casa. Achava normal, cresci indo aos cultos, era como havia sido criada.

Quando me tornei adolescente, no entanto, isso passou a me incomodar. Queria conhecer o mundo e não viver aquela vidinha. Nessa época, minha mãe já tinha outras duas filhas e, aos 14 anos, em busca de mais liberdade, pedi para ir viver com elas. Minha avó não aceitou muito bem, morria de ciúmes. Mas, mesmo contrariada, deixou que eu seguisse meu caminho.

A partir daí, tudo foi muito rápido. Morando com minha mãe comecei a sair, conheci um rapaz e me apaixonei perdidamente. Ele correspondeu, logo começamos a namorar e, ainda com 14 anos, engravidei. Quando contei para o meu companheiro, ele não só sugeriu que eu abortasse como sumiu. Mas, convencida a seguir adiante com a minha gestação, decidi que daria um jeito de criar o meu filho e, com a ajuda das mulheres da família, dei à luz um menino, Caíque.

Elas me socorriam como podiam. Minhas irmãs me ajudavam no dia a dia e dona Genny mandava cesta básica e fraldas. Quando meu filho já estava com 2 anos, consegui alugar uma casa para nós. Nos anos seguintes, tive outros relacionamentos e mais dois filhos, a Kauane e o Rian Kaue – ambos sem nenhum apoio paterno. Ainda assim, nossa vida era tranquila e feliz. Decidi me virar. Me tornei mãe e pai para os meus filhos.

Os anos passaram, até que, com meus filhos já crescidos, após cinco anos morando em uma mesma casa, o dono decidiu reformá-la. Ele contratou o serviço de um pedreiro conhecido dele e me pediu para preparar café da manhã, almoço e jantar para o sujeito.

Era 2013 e eu trabalhava vendendo roupas. Saía de casa de manhãzinha, quando minha filha ia para o colégio, e só voltava à tarde. Foi assim até o dia em que a escola estava passando por uma dedetização e ela não teve aula. Como em todas as manhãs, deixei tudo pronto e saí. No trabalho, porém, me senti diferente, angustiada, como se estivesse pressentindo algo.

“Todo mundo fala que mãe tem sexto sentido, eu acredito. As horas foram passando e, muito mal, segui minha intuição e fui embora. Quando cheguei em casa, me deparei com a cena que mudaria nossas vidas: o homem que prestava serviço para mim segurava minha menina com força. Ela tinha só 14 anos e, quando me viu, já com a blusa caída e o sutiã à mostra, correu para os meus braços, chorando.”

Em choque, parti para cima dele, que também começou a me agredir. No meio desse embate corporal, em coisa de minutos, vi uma faquinha de serra em cima da mesa e não pensei duas vezes: dei dois golpes no abusador. Nunca passou pela minha cabeça tirar a vida de alguém. Mas o impulso foi mais forte que eu. Na hora, só pensava em me defender. Era isso ou ele poderia matar a mim ou a minha menina.

Desesperada, minha filha saiu correndo. A gritaria dentro de casa era tanta que chamou a atenção dos vizinhos. Em pouco tempo, a polícia apareceu e ali, dentro da minha própria casa, fui presa. Um júri popular então me condenou: 13 anos e 4 meses de reclusão. Não veria mais meus filhos todos os dias, não acompanharia o crescimento deles. Me sentia destruída por dentro.

Nos dias seguintes, não conseguia dormir. Eu fechava os olhos e via ele na minha frente, revivia aquela cena, entrava em desespero. Para mim, ele ia me matar. Tive crises de pânico. Precisei passar com uma psicóloga e, de alguma forma, colocar para fora tudo que eu estava sentindo.

Eu sou evangélica e não parava de pensar: ‘Quem sou eu para tirar a vida de alguém?’. Minha filha também sentiu muito. Chorava e dizia que eu estava presa por causa dela. Mas isso não é verdade. Minha mãe conversava muito com a Kauane e explicava que ela não tinha culpa de nada. Minha filha era uma menina muito amorosa e brincalhona. Depois de tudo o que aconteceu, ela não foi mais a mesma pessoa. Não teve mais muitas amizades, foi se fechando.

“Quando cheguei ao presídio, recebi o kit higiene que ganharia todos os meses. Dentro dele, vem um único absorvente, pasta de dente e sabonete. Se a mulher não tem família, passa a depender da boa vontade das companheiras ou precisa sobreviver no improviso.”

Vi colegas pegarem espuma do colchão e colocarem como absorvente para não se sujarem. A questão da saúde é também muito precária. Se não há profissional de saúde na prisão, dependemos da autorização para ir até o médico e de alguém que nos leve.

Deixamos de ser pessoas e viramos números. Tive a sorte de nunca ter tido uma doença grave lá dentro, peguei apenas gripe. Mas vi meninas morrerem ao meu lado porque não havia ninguém para atendê-las. Uma das minhas amigas, a Nega Piu, morreu de infarto, completamente abandonada, sem poder ver os filhos e netos.

Minha família nunca me abandonou, me visitava uma vez por mês. Minha mãe foi muito guerreira. Dormia na porta da cadeia, pegando chuva e sol, para me ver e levar meus filhos até mim. Eu contava as horas para vê-los. Mas o tempo que passávamos juntos nunca era suficiente para matar a saudade e a falta que eu sentia de todos.

“Quando a pandemia chegou, foi ainda mais assustador. Enclausuradas, não sabíamos o que estava acontecendo do lado de fora. Só tinha notícias do mundo pelas cartas que minha mãe escrevia para mim.”

Sentia medo de receber notícias trágicas, perdi meus avós e uma tia querida para a covid-19. Viver a realidade da prisão foi muito duro, mas o que mais me doía era ter perdido a convivência com os meus filhos. Sabia que quando eu saísse eles já não seriam mais as crianças que eu conhecia.

Com medo de ser engolida por aquele ambiente e, como acontece com diversas mulheres que não aguentam a pressão do sistema prisional, enlouquecer, tentava me manter focada lá dentro, estudando e trabalhando sempre para distrair a mente. Acordava às 7h, tomava banho, café, e ia trabalhar. Fazia sacolas, rabiolas, costurava, cozinhava. Na hora do almoço, voltava para a cela e às 13h abriam as trancas para voltar à labuta.

Como tinha bom comportamento, depois de seis anos e quatro meses, entrei em regime semiaberto. Saía então para a firma de costura às 8h e voltava às 16h para o jantar. Até que, em julho de 2021, recebi a notícia que eu tanto esperava: estava livre.

“Não lembro o dia exato em que deixei a prisão e até hoje não sei explicar a sensação que é ganhar a liberdade – o ar, o vento batendo no rosto. O coração dispara, as pernas tremem, dá vontade de sair correndo, sentir, ver o mundo.”

Não lembro o dia exato em que deixei a prisão e até hoje não sei explicar a sensação que é ganhar a liberdade – o ar, o vento batendo no rosto. O coração dispara, as pernas tremem, dá vontade de sair correndo, sentir, ver o mundo. Quando finalmente recebi o alvará de soltura, decidi voltar para casa a pé.

Em determinado ponto do caminho, no entanto, liguei para minha mãe de um orelhão. Pude escutar seus berros comemorando, gritando para todo mundo que a filha estava livre. Minha filha foi até lá me buscar de carro. Nos abraçamos e choramos muito. Chegar em casa e ver minha família, conhecer meu sobrinho que só tinha visto por fotos, tornou aquele um dos dias mais felizes da minha vida.

Hoje, cumpro o resto da minha condenação em regime domiciliar. Moro com a minha mãe, minha menina e meu caçula, que me cedeu a cama para eu nunca mais precisar deitar no chão.

Todo mês preciso ir ao fórum, não posso frequentar bares e tenho que estar em casa antes das 22h. Voltei a trabalhar, sou faxineira em um condomínio, e pretendo fazer alguns cursos, me aperfeiçoar na costura.

“Quero, futuramente, fazer faculdade de psicologia, ter a minha casa e esperar os netos chegarem. Mas não é fácil. É raro encontrar pessoas que nos vejam de outra maneira que não como ex-detentas. Queria que a sociedade começasse a nos enxergar como seres humanos que somos.”

Quando me perguntam sobre o que eu sinto diante de tudo que passei, eu simplesmente digo que não queria que nada daquilo tivesse acontecido. Não sou mais a mesma, tenho excesso de medo, a sensação de que tem alguém me perseguindo. Eu sinto umas coisas estranhas.

Mas, com toda a honestidade, não sei se poderia ter feito diferente. Não temos preparo para enfrentar algumas coisas que encontramos pelo caminho, especialmente quando são nossos filhos que estão em risco. Por isso, acho difícil falar em arrependimento.

Estou a três anos do fim da minha dívida com o Estado. A única coisa que consigo pensar, enquanto conto os dias, horas e minutos para esse momento chegar, é que não quero ser uma ex-detenta, mas apenas Genny. Uma mulher de 39 anos, pronta para seguir em frente.”

Marie Claire
Foto – Reprodução

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