Início Colunistas A mulher que morreu de inveja

A mulher que morreu de inveja

Todo sábado, como vocês sabem, a nata boêmia da cidadezinha se juntava na Toca d’Anta, em redor do professor Polyclínio, para botar a prosa em dia. O cardápio era sempre o mesmo: bolinho de aipim com carne seca, chope ou cuba-libre para a rapaziada, o “Casal Garcia” no capricho para o velho sábio. A pauta, igualmente, invariava: futebol, política, piada, eventualmente um papo-cabeça.
    
Naquela noite a roda abriu a tertúlia ecoando um cochicho superquente, que desde o início da semana vinha ocupando as línguas da aldeia: a súbita falecência de Dona Trudes, respeitável senhora agora recarimbada como “a mulher que morreu de inveja”.
    
Cada um acrescentava novo tempero ao caso. No resumo da ata registrou–se que o problema era antigo: Dona Trudes tinha uma prima rica, elegante e paparicada. Na infância foram quase que nem irmãs. Aos poucos a diferença de posses entre as duas famílias foi criando muros. A riquinha cada vez mais chique, a pobrinha cada vez mais deixada de lado, resultando daí, no sistema emocional da desprovida, uma amargosa situação de inveja.
    
Foi assim até se dar que programaram um show com a então superbadalada cantora Emilinha Borba. Só que porém não havia ali hotel à altura da rainha do rádio, e vai daí que hospedaram a estrela na casa mais tchan do lugar – justamente a da tal venturosa prima. Era a espoleta que faltava para explodir o coração de Dona Trudes. Emilinha era sua máxima ídala; então como podia vir agora soprar mais vento nas vaidades da prima granfa? Não deu para aguentar humilhação tamanha… Boooommmmmm!!!!!
    
“Morreu de inveja”. De imediato a “causa mortis” da infartada se espalhou, chegando enfim ao douto plenário da Toca d’Anta. De repente, todavia, o foco mudou: começaram a discutir sobre até que ponto inveja era pecado e até que ponto a finada correria o risco de levar uns puxões de orelha na porta da eternidade. Nesse momento o professor Polyclínio saiu do seu nobre silêncio, deu uma cachimbada, sentenciou do alto dos seus oitenta anos de sabedoria:         
    
– Calma aí, meninos. A coisa não é bem assim. Todo pecado prejudica alguém, porém nem sempre é um delito, ou seja, pode ser ativo ou passivo. Se prejudica outras pessoas, é pecado ativo, e aí é delito sim. Mas se só prejudica o próprio pecador, então é antes uma forma de enfermidade – é pecado passivo. No caso de Dona Trudes, se pecado havia, não podia ser diagnosticado como delituoso, visto que a inveja só causava sofrimento a ela mesma. Ela não era culpada, era vítima; logo, não merecia condenação, mas compreensão e carinho.
    
– Falou com categoria, mestre – disse um dos participantes da roda. E o professor concluiu:
    
– Na maioria dos casos, o invejoso é, no fundo, apenas uma pessoa carente de autoestima, e é isso que o infelicita e às vezes leva ao desespero. Se Dona Trudes tivesse podido contar com a ajuda de um bom profissional, teria provavelmente conseguido reajustar a contento o seu equilíbrio psicológico e estaria hoje tocando serenamente a vida, sem dar a mínima para a prima desfrutante de mais luminosa sorte.

A. A. de Assis
Foto – Reprodução

COMPARTILHE: