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“Tô só matutando”

Lembra-se do tio João? Aquele que não era nosso tio mas a gente o chamava assim porque ele tinha jeito e ternura de tio. Já passado dos 80, morava numa casa ao lado da pensão de estudantes onde por algum tempo vivi em Bauru, antes de vir para Maringá.

     Morava ali com a velhinha dele mais uma filha solteira. Antes da aposentadoria, além de cuidar de um pequeno sítio, curtia música e poesia. Ótima pessoa, todos diziam, todavia caladão. Já a tia era chegada num bom papo. Se não tinha com quem conversar, ela cantava. Cozendo ou cosendo, aquecia as cordas vocais cantarolando modinhas da época ou canções italianas.

     Todo fim de tarde o tio punha a cadeira de balanço na calçada e ficava ali horas com os olhos semifechados. Se algum passante perguntava se ele estava tirando um cochilo, tio João levantava a cabeça e corrigia: “Tô não. Tô só matutando”.

     Que seria matutar? Teria algo a ver com matuto? E matuto teria algo a ver com mato? Então matutar seria ficar quietinho num canto, que nem costumam fazer os sábios vovôs da roça, cismando coisas, ruminando lembranças, curtindo saudades, redemoinhando ideias. O tio, se rindo, explicava que matutar era o mesmo que pensolofar (pensar filosofando).

     Aí entendi. Ele era caladão porque gostava de pensolofar e para isso precisava de silêncio e sossego. Não sei como a tia conseguiu se acostumar, ela sempre tão proseante, ele tão recolhido nas suas matutações. Nuns certos momentos até lhe levava uma caneca de chá com biscoitos de polvilho e lhe fazia uns cafunés.

     A filha deles contava que um dia chegou a perder a calma e passou um pito no pai. Disse que ele precisava tomar tenência e se dar conta de que sua caladice incomodava os circunstantes. Deu daí que ele matutou por uns instantes, pediu perdão, jurou que ia dar mais atenção às pessoas, a começar pela tia. No dia seguinte chamou a família, pegou o violão e cantou uma valsa que acabara de compor. Chamava-se “A rosa do vale”.

     Rosa era o nome da meiga esposa. Miudinha, cabelos brancos, nos olhos o azul herdado dos ancestrais austríacos. Ele herdeiro de uma mistura de pai português e mãe espanhola. O bom tio João. Caladão sim, mas de carinho gostava e até com certa frequência sorria.

     Mudara para a cidade já com 70 e tantos, quando, com a saúde meio perrengando, as filhas o convenceram a vender o sítio. Mudara a contragosto – sentia falta da cena rural. Era um bucólico. Tinha aquele jeitão romântico, mas ao mesmo tempo era bom de serviço. Acordava de madrugada e começava o dia no curral tirando leite das vacas, depois ia trabalhar na plantação. Como não tinha nenhum filho homem, eram as filhas que o ajudavam a cuidar da lida.

     Tudo isso sem jamais porém esquecer o artista que havia nele. De dia na roça puxava a enxada, de noite na varanda dedilhava o violão. Falava pouco, sonhava muito.

      A tia o entendia bem. Havia um brilho mágico em seus belos olhos azuis toda vez que lhe levava uma caneca de chá com biscoitos de polvilho.

A. A. de Assis
Foto – Reprodução

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