No aglomeraço de cimento e aço, pequena árvore, ao lado de outra mais pequena ainda, ocupava tímido lugar no espaço.
Duas árvores, a maiorzinha e a mais pequena, lembrando aos sobreviventes do asfalto que ainda havia verde, e ainda havia sonho, e até esperança havia ainda.
Quem as plantara – aquelas duas criaturinhas verdes –, não sei dizer. Abençoadas mãos. Eram duas árvores apenas, tão pequenas – o que da natureza restava na cinzenta área.
Ali era o quintal, era o pomar, era o “parque nacional” que das janelas das torres a vizinhança encaixotada via, e amava.
Uma árvore maiorzinha e outra mais pequena. Ao lado delas os aposentados da quadra fundaram o clubinho de truco. De longe se escutava o eco.
De manhã, ponto de encontro das babás que se reuniam para dar sol aos bebês. Parada obrigatória também das apressadas senhoras e dos sisudos cavalheiros que os elevadores despejavam aos punhados para mais uma jornada de quefazeres.
De dia, o dia inteiro, as duas arvorezinhas assistiam ao entra e sai de moradores, porteiros, faxineiros, carteiros, eletricistas, encanadores, fisioterapeutas, entregadores, todos tão íntimos. Alguns mais desatentos. Outros tão carinhosos que paravam e lhes acariciavam as folhas.
De noite, casais românticos exibiam ali o seu amor em cenas que elas, as arvorezinhas, testemunhavam com generosa cumplicidade.
Até que num certo/incerto dia, assim-assim, num de repente, chegou um homem pilotando impiedosa máquina, em nome dessa coisa assustadora chamada progresso.
A tal ferramenta era um bicho feio, de ferro, terrivelmente faminto, e rosnava, e avançava, e eram inúteis as lágrimas encachoeiradas das torres, inúteis os gritos vindos de todos os ecos.
O bicho rosnava e ia comendo tudo: as arvorezinhas, os sonhos, o clubinho de truco, a esperança, o ponto de encontro das babás, o “parque nacional” da vizinhança…
Do alto uma câmera filmava flashes da des-criação do mundo.
Tão diferente do comecinho de tudo, quando o Amor criou e colocou cada coisa em seu devido lugar e ninguém filmou, ninguém fotografou. Teria sido o mais belo e rico documentário de todas as eras. O acendimento das estrelas no céu, a espalhação das sementes na terra, a soltura dos peixes nas águas, a inauguração das flores, a afinação da orquestra dos pássaros. Que pena: não havia nenhuma câmera lá para gravar tais cenas.
Agora atentas kodaquinhas chamadas celurares estão em toda parte permanentemente engatilhadas para registrar cada movimento da des-criação. Mas será que sobrará alguém vivo para daqui a alguns anos ver o triste filminho do desfazimento daquelas duas derradeiras arvorezinhas – a maiorzinha e a mais pequena?
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P.S. – Esta coluna entra hoje em férias, com previsão de retorno em fevereiro. Grande abraço
A. A. de Assis
Foto – Reprodução