De repente sou surpreendido com um, “você não se lembra de mim?” Desarmado, penduro um sorriso falso no canto da boca, olho o interlocutor com cara de inteligente e boto milhões de neurônios à cata de informações, em meu socorro.
Vasculho, em segundos, milhões de caminhos da mente. Em que canto, diabos, escondeu-se essa lembrança? Também em segundos, apelo para o algum deus grego (pode ser até romano), da memória, se é que existe. E tudo falha.
“Você me dava metade do seu lanche, na escola, não se lembra?” É uma pequena ajuda, na brincadeira do gato e o rato. Como se o gato soltasse um pouco sua presa para que tudo ficasse mais divertido. Pelo menos, em fração de segundo, um pouco me alegro: se eu lhe dava metade do meu lanche, não fui uma criança assim tão má.
Com esse gesto acumulei alguns pontos que me garantirão um lugar no céu, quem sabe. Mas, e se, em vez de ganhar um pedaço do meu lanche, esse cara o tomava de mim? Então, que ele pague na hora do juízo final, o azar será dele.
Ficamos parados no ar, mas o gato tem o domínio da situação: “Você não se lembra do fulano?” Certamente um amigo comum da época. Estaria tentando me ajudar? Ou estaria blefando para me confundir ainda mais? Tudo é possível, nesse jogo de gato e rato. Se ao menos ele não ficasse me olhando diretamente nos olhos…
Projeto na memória um vídeoteipe da infância. A escola, Dona Iracema e sua varinha de bambu (naquela época podia). “Vamos embora”, comenta alguém, “ele não se lembra de você”.
Mas o gato insiste: “éramos eu, o Manezão e o Pirata”. Ah, alguma coisa está clareando: do Pirata eu me lembro (penso baixo para não animá-lo). O Pirata era um sujeito forte que batia em todo mundo. Uma vez arrancou, com os dentes, um pedaço da orelha de um “coleguinha”. Dessas crueldades me lembro, pois a memória anda juntinha com as emoções.
Se não me lembro de você – tenho vontade de dizer – é porque você nunca me causou alguma emoção, nunca arrancou a orelha de ninguém. Para de me encher o saco! Mas não estou em posição de tomar iniciativas. Essas pertencem ao chato, quero dizer, ao gato, que reinicia seu jogo e dá mais corda ao rato, quero dizer, a mim: “Casei-me com a Jandira”, diz ele. “Ah, com a Jandira? Bem feito, aquela magricela!” – penso, mas não digo.
O tempo é implacável, alguns gênios já nos alertaram. Estão aí os taxímetros, os espelhos onde perdemos nossa face, Marcel Proust com suas recordações do tempo perdido e Beethoven com as rajadas da sua Quinta Sinfonia (o tempo batendo à porta).
Perdoo meu amigo de infância por ter me encurralado num canto obscuro da lembrança, ele não tinha a intenção de me constranger. Se pudesse voltar no tempo lhe daria até meu lanche inteiro. Mas “Você não se lembra de mim?”, é coisa que não se diz a ninguém.’
Este texto é do meu amigo Vasco Pereira de Oliveira, colega aposentado do Banco do Brasil, com quem trabalhei na agência de Caarapó- MS, de 1983 a 1985, de quem me lembro muito bem, com as falhas de memórias, naturais na terceira idade.
Segundo ele, a narrativa é verídica, e serve de mote para uma reflexão sobre o bendito esquecimento do passado, que acontece com todos nós, como Espíritos imortais.
‘O esquecimento não é obstáculo para se aproveitar da experiência de vidas anteriores. Se Deus quis assim, é que há nisso vantagem. A lembrança traria gravíssimos inconvenientes. Poderia, em certos casos, humilhar-nos ou, exaltar-nos o orgulho e, assim, entravar o nosso livre-arbítrio, acarretando perturbação nas relações sociais.
Quase sempre, renascemos no mesmo meio em que já vivemos, estabelecendo de novo relações com as mesmas pessoas, a fim de reparar o mal que lhes tenhamos feito.
Nascemos com o que adquirimos. E cada existência tem um novo ponto de partida. É bom não sabermos o que fomos antes, agradecendo por isso.’ ( baseado no ESE)
Que ao final de nossas existências, não tenhamos que passar pelas provas ou expiações do esquecimento do passado recente.
Akino Maringá, colaborador
Foto – Reprodução