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Nosso destino não está predeterminado

Você acredita que a sua história está predeterminada, preestabelecida? Acha possível assumir o controle da sua história e virar o jogo de sua vida?

Toda pessoa sofre o condicionamento das condições sociais, econômicas e culturais que estão em seu entorno. Isso é inevitável. Um exemplo: alguém que nasceu numa família muito pobre, filho de uma garota adolescente, que, grávida, foi abandonada pelo namorado, que para sustentar essa criança precisava fazer diárias e o bebê ficava o dia inteiro com a avó… Alguém que vive ou viveu nessas condições sofrerá o efeito desse ambiente.

A realidade de cada pessoa tem influência direta sobre sua condição de vida e pode afetar inclusive os seus sonhos.

Para problematizar essa questão com meus alunos, costumo criar um cenário comparativo. Uso como referência duas pessoas da sala e, de maneira hipotética, construo uma breve história sobre elas. Imagine comigo: a primeira é uma jovem que acorda às seis horas da manhã, se arruma e toma seu café de maneira apressada. Pega o ônibus antes das 7h. Gasta pelo menos uma hora para chegar no trabalho. O ônibus, lotado, não permite nenhum conforto.

Aquela jovem trabalha duro e tem apenas 50 minutos para almoçar. O almoço é uma marmita preparada na noite anterior.

Mal come, volta ao trabalho. Às, sai apressada, toma outro ônibus e vai direto para a faculdade. O lanche da noite é um pacotinho de bolacha água e sal. Às 19h, as aulas começam. São 4 horas de aulas. Por volta das 23h, a jovem sai da faculdade, pega mais um ônibus e retorna para casa. Chega perto da meia-noite. Em casa, esgotada do dia, ainda precisa preparar algo para comer – inclusive o almoço do dia seguinte. Quando deita para dormir, já passou da uma hora da manhã. Ela terá, no máximo, 5 horas para descansar e começar tudo de novo.

Conseguiu visualizar a rotina dessa jovem? Será que identificou alguém que você conhece?

Mas lembra que citei que haveria uma outra pessoa para ilustrar meu exemplo hipotético?

Temos então outra jovem. Esta tem a tranquilidade de apenas estudar; vez ou outra, ajuda os pais numa pequena loja, mas só faz isso de vez em quando. A moça pode acordar tranquilamente às 9h. Quando acorda, o café está pronto e, por volta da uma hora da tarde, também tem almoço garantido. Uma empregada prepara tudo – inclusive o lanche ou o jantar da noite. Ela tem o dia inteiro pra ela. pode estudar, fazer as atividades da faculdade, participar de projetos de extensão, estágios… E ainda, no final do dia, tomar banho em casa e se preparar tranquilamente para ir à faculdade. O pai da jovem leva e busca no carro da família. A jovem nunca precisou de transporte público.

Conseguiu imaginar essa jovem?

Agora, me diz, dessas duas jovens, qual precisa se esforçar mais, muito mais, para dar conta de tirar a nota mínima necessária para ser aprovada na faculdade? Qual tem mais chance de desistir da faculdade?

A resposta é óbvia: a primeira. A segunda jovem reúne uma condição privilegiada para fazer o curso e ser muito bem-sucedida – só vai dar errado se for displicente e não aproveitar suas oportunidades. Já a primeira jovem da nossa história hipotética vai conviver sempre com a tentação de desistir. A condição dela não é nada favorável. E ela não teve escolha. Ela não escolheu a pobreza. Ela não escolheu a vida difícil que tem.

Esse cenário que acabei de retratar é a condição real de milhões de jovens no Brasil (e de suas famílias – por sinal, muitos sequer possuem uma família). A condição de pobreza ou de miséria não é escolha. Também não é escolha de ninguém nascer ou não numa família escolarizada, que prioriza os estudos e o acesso à diversidade cultural.

E, preste atenção, o ambiente onde nascemos e crescemos forma, inclusive, a nossa mentalidade, a nossa forma de ver o mundo. E essa mentalidade, essa forma de enxergar o mundo, condicionam as escolhas que fazemos. Porém, existe uma boa notícia. Você lembra das perguntas que eu fiz no comecinho?

Você acredita que a sua história está predeterminada, preestabelecida? Acha possível assumir o controle da sua história e virar o jogo de sua vida?

O mestre Paulo Freire escreveu:

“Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu ‘destino’ não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir”.

Uau! Que afirmação incrível.

Ser gente é exercer o direito de escolha. E qualquer pessoa pode, ao tomar consciência da sua vida, das suas condições, das suas limitações, ao ter compreensão de qual é a sua vida, pode lutar para mudá-la, para modificar as condições de sua existência.

Tomar consciência é a chave. Saber da responsabilidade de promover a mudança, reconhecer-se como agente da mudança pessoal e do próprio mundo. Paulo Freire ressalta: “sei que os obstáculos não se eternizam”. Ou seja, as barreiras podem ser removidas. É preciso lutar por isso.

Ninguém está condenado a viver uma condição de menoridade. Um texto como este – seja publicado no jornal , internet, ou em áudio, vídeo etc – pode servir de insight pra uma pessoa parar e pensar: “ei, eu posso ter uma vida diferente, uma vida melhor; eu também sou responsável pelo mundo que está aí”.

Significa que a mudança será fácil? De jeito nenhum.

As condições desfavoráveis que herdamos tornam tudo mais difícil. Acessar uma boa escola é mais difícil; entrar numa boa faculdade é mais difícil; conseguir um bom emprego é mais difícil… Mudar uma cultura de corrupção, o hábito do jeitinho… Tudo é difícil.

Mas o fato de ser mais difícil não pode ser desculpa para continuar como está. Como sustenta o educador, o nosso destino não é um dado; é algo que sofre a influência de nossas ações. Precisamos assumir nossa responsabilidade e reconhecer, inclusive, que se tudo der errado, talvez também sejamos culpados do desastre por omissão.

Para concluir, mais uma frase de Paulo Freire: “Sei que as coisas podem até piorar, mas sei também que é possível intervir para melhorá-las”. E aí, você vai aceitar as condições que você tem, que a sociedade tem, permitindo que tudo continue do jeito que está ou vai assumir as rédeas da sua vida e lutar para melhorar a sua história?


Ronaldo Nezo
Jornalista e Professor
Especialista em Psicopedagogia
Mestre em Letras | Doutor em Educação
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